Inicialmente, cumpre-nos conceituar a cessão de crédito. Silvio Rodrigues apresenta a seguinte definição:
A cessão de crédito é o negócio jurídico, em geral de caráter oneroso, através do qual o sujeito ativo de uma obrigação a transfere a terceiro, estranho ao negócio original, independentemente da anuência do devedor. O alienante toma o nome de cedente, o adquirente o de cessionário, e o devedor, sujeito passivo da obrigação, o de cedido(1).
Carlos Roberto Gonçalves, por seu turno, ensina que:
Cessão de crédito é negócio jurídico bilateral, pelo qual o credor transfere a outrem seus direitos na relação obrigacional(2).
Flávio Tartuce, apresenta o seguinte conceito: A cessão de crédito pode ser conceituada como um negócio jurídico bilateral ou sinalagmático, gratuito ou oneroso, pelo qual o credor, sujeito ativo de uma obrigação, transfere a outrem, no todo ou em parte, a sua posição na relação obrigacional. Aquele que realiza a cessão a outrem é denominado cedente. A pessoa que recebe o direito do credor é o cessionário, enquanto o devedor é denominado cedido (3).
Desse modo, temos que a cessão de crédito é o contrato pelo qual o credor transfere seus créditos a terceiro estranho a relação obrigacional de origem.
Importante asseverar que a cessão transfere todos (4) os elementos da obrigação, tais como, juros, multas e, inclusive, garantias da dívida, salvo expressa disposição em contrário. Logo, se a obrigação cedida é garantida por hipoteca, o cessionário torna-se credor hipotecário; se por penhor, o cedente é obrigado a entregar o objeto empenhado ao cessionário.
Outro aspecto relevante acerca da cessão de crédito é que o cedido (devedor na relação
obrigacional) não pode se opor à realização do negócio, ou seja, a cessão independe da anuência do devedor.
Após essas considerações iniciais, aprofundaremos o estudo desse instituto, o qual está regulamentado pelos artigos 286 a 298 do Código Civil Brasileiro.
A princípio, todo e qualquer crédito pode ser objeto de cessão de direito, esteja ele vencido ou não. Porém, o art. 286 do Código Civil faz uma ressalva:
Art. 286. O credor pode ceder o seu crédito, se a isso não se opuser a natureza da obrigação, a lei, ou a convenção com o devedor; a cláusula proibitiva da cessão não poderá ser oposta ao cessionário de boa-fé, se não constar do instrumento da obrigação.
Flávio Tartuce (5) esquematizou três regras relativas à cessão de crédito presentes no dispositivo supratranscrito:
1ª regra: Não é possível ceder o crédito em alguns casos, em decorrência de vedação legal como, por exemplo, na obrigação de alimentos (art. 1.707 do CC (6) e nos casos envolvendo os direitos da personalidade (art. 11 do CC (7).
2ª regra: Essa impossibilidade de cessão pode constar de instrumento obrigacional, o que também gera a obrigação incessível. De qualquer forma, deve-se concluir que se a cláusula de impossibilidade de cessão contrariar preceito de ordem pública não poderá prevalecer em virtude da aplicação do princípio da função social dos contratos e das obrigações, que limita a autonomia privada, em sua eficácia interna, entre as partes contratantes (art. 421 do CC (8).
3ª regra: Essa cláusula proibitiva não pode ser oposta ao cessionário de boa-fé, se não constar do instrumento da obrigação, o que está em sintonia com a valorização da eticidade, um dos baluartes do atual Código. Isso ressalta a tese pela qual a boa-fé objetiva é princípio de ordem pública, conforme o Enunciado n. 363 CJF/STJ, da IV Jornada de Direito Civil: ‘Os princípios da probidade e da confiança são de ordem pública, estando a parte lesada somente obrigada a demonstrar a existência da violação."
Carlos Roberto Gonçalves traz outro exemplo em que o crédito não pode ser objeto de cessão:
Não podem ser cedidos créditos atinentes aos vencimentos de funcionários ou os créditos por salários; os créditos decorrentes de direitos sem valor patrimonial; os créditos vinculados a fins assistenciais; os créditos que não possam ser individualizados, pois a cessão é negócio dispositivo, devendo ser seu objeto determinado, de forma que não valerá a cessão de todos os créditos futuros, procedentes de negócios etc (9).
Existem outras hipóteses em que a lei veta a cessão de crédito, são elas: direito de preempção ou preferência (art. 520 do CC); do benefício da justiça gratuita (Lei 1.060/50, art. 10); da indenização derivada de acidente no trabalho (Decreto-lei 7.036/44, art. 97), do direito à herança de pessoa viva (Art. 426 do CC); de créditos já penhorados (art. 298 do CC); do direito de revogar doação por ingratidão do donatário (art. 560 do CC).
No que diz respeito à capacidade dos agentes envolvidos, cedente e cessionário devem ser pessoas capazes e legitimadas para praticar o ato de alienação ou compra e, quanto ao cedente, por óbvio, que seja titular do crédito objeto da cessão.
Imperioso destacar ainda que, na hipótese da cessão ser formalizada por procurador, esse deverá ter poderes especiais e expressos nesse sentido, a teor do quanto disposto no art. 661, §1º do Código Civil(10).
Por fim, quanto a legitimação, algumas pessoas não podem adquirir certos créditos, como por exemplo, tutores e curadores não podem figurar como cessionários de seu pupilo e curatelado. Igualmente, os pais que administram os bens dos filhos, não podem ceder direitos sem autorização judicial (art. 1.691 do CC). O falido, igualmente, não está legitimado a praticar qualquer ato de
cessão por razões óbvias.
Quanto à forma do negócio, a lei não exige qualquer forma especial para que a cessão tenha validade jurídica entre as partes. Nesse sentido leciona o insigne Silvio Rodrigues:
A lei não impõe qualquer forma específica no que concerne às relações entre cedente e cessionário. Trata-se de negócio não solene e consensual, isto é, que independe de forma determinada. E se aperfeiçoa pelo mero consentimento das partes (11).
Não obstante, Carlos Roberto Gonçalves assevera que se a cessão tiver por objeto direitos em que a escritura pública seja da substância do ato, a cessão também deverá ser realizada por intermédio de escritura pública, tal como, no caso de cessão de crédito hipotecário, sem o que, não será possível a realização do registro perante o Cartório Imobiliário (12).
Todavia, importante ressaltar o quanto disposto no artigo 288 do Código Civil para que a cessão tenha validade perante terceiros:
Art. 288. É ineficaz, em relação a terceiros, a transmissão de um crédito, se não celebrar-se mediante instrumento público, ou instrumento particular revestido das solenidades do § 1o do art. 654.
Dispõe o referido §1º do artigo 654 do Código Civil:
§ 1o O instrumento particular deve conter a indicação do lugar onde foi passado, a qualificação do outorgante e do outorgado, a data e o objetivo da outorga com a designação e a extensão dos poderes conferidos.
Isso quer dizer que o instrumento de cessão deverá conter a indicação do lugar onde foi firmado, a qualificação dos contratantes, a data e o objetivo da cessão. Carlos Roberto Gonçalves acrescenta que deve o instrumento ser registrado perante o Cartório de Títulos e Documentos, nos termos do art. 221 do Código Civil (13) e artigo 129, §9ª da Lei de Registros Públicos (14).
Importante destacar que essas formalidades são exigidas para que a cessão de crédito tenha validade contra terceiros, com quem não se confunde o cedido (devedor), pois, como mencionado, esse não tem o direito de obstar a cessão, ressalvada a hipótese de cláusula proibitiva expressa no contrato celebrado com o cedente, como já mencionado.
A notificação do devedor acerca da cessão de crédito é exigência legal prevista no artigo 290 do Código Civil com finalidade distinta:
Art. 290. A cessão do crédito não tem eficácia em relação ao devedor, senão quando a este notificada; mas por notificado se tem o devedor que, em escrito público ou particular, se declarou ciente da cessão feita.
A leitura desatenta do referido dispositivo pode induzir o leitor a erro. A norma não diz que a notificação do devedor é indispensável para validade da cessão de crédito. Vejamos o que ensina Carlos Roberto Gonçalves:
Não pretendeu a lei dizer que a notificação é elemento essencial à validade da cessão de crédito, mas apenas que não é eficaz em relação ao devedor, isto é, que este só está sujeito às suas consequências a partir do momento em que tiver conhecimento de sua realização (15).
Em outro trecho, o referido doutrinador, explica que a notificação do devedor é expressamente exigida para, tão somente, preservá-lo do cumprimento indevido da obrigação, pois esse poderia efetuar o pagamento ao cedente, antigo credor(16).
E aqui cabe trazer à colação lição de Antunes Varela:
(o devedor) ignorando a cessão, pagar ao credor primitivo, o pagamento considera-se bem feito, em homenagem à boa-fé do devedor, que se considera definitivamente desonerado. Como porém, a cessão é válida entre as partes, independentemente da notificação ao devedor, o credor primitivo que recebeu a prestação dispôs de direito alheio, enriquecendo-se ilicitamente à custa do cessionário. E terá, consequentemente, que restituir ao lesado tudo quanto indevidamente recebeu do devedor (17.
Nesse sentido é o artigo 292 do Código Civil:
Art. 292. Fica desobrigado o devedor que, antes de ter conhecimento da cessão, paga ao credor primitivo, ou que, no caso de mais de uma cessão notificada, paga ao cessionário que lhe apresenta, com o título de cessão, o da obrigação cedida; quando o crédito constar de escritura pública, prevalecerá a prioridade da notificação.
Todavia, em sentido oposto, se, após ser devidamente notificado, pagar ao cedente, o devedor não se desonerará da obrigação, posto que, quem paga mal, paga duas vezes.
O artigo 292 em análise, ainda traz outra hipótese pela qual o cedido será exonerado da obrigação, qual seja, no caso de mais de uma cessão notificada, paga ao cessionário que lhe apresenta, com o título de cessão, o da obrigação cedida. Isso quer dizer que, se o cedido receber mais de uma notificação e pagar ao cessionário que lhe apresente o título comprobatório da obrigação, esse ficará desonerado.
Quanto à forma da notificação, é importante destacar que o artigo 290 do Estatuto Civil não impõe qualquer forma específica para que o ato tenha validade. Portanto, essa notificação poderá ser judicial ou extrajudicial, podendo ser realizada pelo cedente e pelo cessionário. Não obstante, é fato que o maior interessado na notificação é o cessionário, pois o cedido será desonerado na hipótese de pagar ao cedente antes de realizada a notificação.
A notificação ainda poderá ser expressa ou presumida. Será expressa quando o cessionário ou cedente, comunicam ao devedor acerca da ocorrência da cessão. Por outro lado, é presumida àquela manifestada pela ciência espontânea do devedor, em escrito público ou particular(18), nos exatos termos da parte final do artigo 292 do Código Civil.
Carlos Roberto Gonçalves afirma que tem-se entendido que a citação inicial para ação de cobrança equivale à notificação da cessão, assim como a habilitação de crédito na falência do devedor produz os mesmos efeitos da notificação(19).
Esse entendimento encontra respaldo no artigo 293 do Código Civil, vejamos:
Art. 293. Independentemente do conhecimento da cessão pelo devedor, pode o cessionário exercer os atos conservatórios do direito cedido.
Tome por exemplo que o cessionário recebeu crédito que prescreverá no dia seguinte. Para evitar que essa ocorra, o cessionário pode lançar mão de todas medidas judicias à sua disposição, antes mesmo, de realizada a notificação.
Essa é a lição de Flávio Tartuce:
Desse modo, a ausência de notificação do devedor não obsta a que o cessionário exerça todos os atos necessários à conservação do crédito objeto da cessão, como a competente ação de cobrança ou de execução por quantia certa(20).
Importante ainda destacar, sobre a notificação, que determinados créditos dispensam à notificação para obrigar o devedor, justamente, por obedecerem norma específica, tais como, os títulos de crédito ao portador(21) àqueles transferíveis por endosso. Vale ainda destacar, que a transmissão das ações nominativas, dispensa notificação, pois o artigo 31, §1º da Lei das S.A.(22) rescreve que as ações são transferidas pela inscrição nos livros de emissão.
Por outro lado, é de salutar importância destacar o quanto asseverado pelo artigo 294 do Código Civil:
Art. 294. O devedor pode opor ao cessionário as exceções que lhe competirem, bem como as que, no momento em que veio a ter conhecimento da cessão, tinha contra o cedente.
Realizada a notificação, nasce ao cedido o direito de opor ao cessionário as exceções que tinha contra o cedente. Note-se que a lei é clara em estabelecer o momento oportuno para que o cedido manifeste as exceções ou defesas que tinha contra o cedente: no momento em que veio a ter conhecimento da cessão.
Segundo escólio de Carlos Roberto Gonçalves, se o devedor, notificado da cessão, não se opõe, nesse momento, as exceções pessoais que tiver contra o cedente, não poderá mais arguir contra o cessionário as exceções que eram cabíveis contra o primeiro, como pagamento da dívida, compensação etc (23).
Porém, isso não implica dizer que, por ocasião de eventual ação judicial, o devedor não possa apresentar prova de pagamento anterior à realização da cessão, pois, do contrário, representaria significativa ofensa à vedação ao enriquecimento sem causa.
Destaque-se, outrossim, que as exceções que o cedido tiver contra o cessionário poderão ser arguidas em qualquer tempo, como por exemplo, a exceção do contrato não cumprido. Esse ponto é de extrema relevância ao cessionário, pois, se o cedente não cumpriu sua obrigação em contrato bilateral com o cedido, esse não está obrigado a adimplir sua contraprestação, podendo opor-se ao cessionário, sobre quem recairá a obrigação de cumpri-la.
Acerca do crédito cedido, dispõe o art. 295 do Código Civil:
Art. 295. Na cessão por título oneroso, o cedente, ainda que não se responsabilize, fica responsável ao cessionário pela existência do crédito ao tempo em que lhe cedeu; a mesma responsabilidade lhe cabe nas cessões por título gratuito, se tiver procedido de má-fé.
O dispositivo é claro. O cedente é responsável pela existência do crédito na data da cessão. É completamente diferente a responsabilização pela existência do crédito e solvência do cedido.
Ademais, a lei isenta o cedente na hipótese de insolvência do cedido, salvo se houver estipulação em contrário. E ainda que o cedente seja responsável pela solvência, sua obrigação será limitada àquilo que recebeu do cessionário, acrescido de juros e demais despesas.
Os artigos 296 e 297 do Estatuto Civil proclamam nesse sentido:
Art. 296. Salvo estipulação em contrário, o cedente não responde pela solvência do devedor.
Art. 297. O cedente, responsável ao cessionário pela solvência do devedor, não responde por mais do que daquele recebeu, com os respectivos juros; mas tem de ressarcir-lhe as despesas da cessão e as que o cessionário houver feito com a cobrança.
As ponderações acima abordadas são necessárias para compreensão mínima do instituto da cessão de crédito, o qual é largamente utilizado para transmissão de direitos e obrigações diariamente, revelando-se instrumento da maior importância para equalização de complexas situações jurídicas.
* André Sacramento – Sócio Fundador no SLS Advogados
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1Direito Civil. 27ª ed. ver. atual. São Paulo: Saraiva, 1999. p. 291
2Dreito civil brasileiro, volume 2: teoria geral das obrigações. 8ª ed. São Paulo: Saraiva, 2011. p. 216.
3Manual de Direito Civil. Volume único. 2ª ed. rev. atual. São Paulo: Método, 2012. p. 380.
4Código Civil. Art. 287. Salvo disposição em contrário, na cessão de um crédito abrangem-se todos os seus acessórios.
5Manual de Direito Civil. Volume único. 2ª ed. rev. atual. São Paulo: Método, 2012. p. 381.
6Art. 1.707. Pode o credor não exercer, porém lhe é vedado renunciar o direito a alimentos, sendo o respectivo crédito insuscetível de cessão, compensação ou penhora.
7Art. 11. Com exceção dos casos previstos em lei, os direitos da personalidade são intransmissíveis e irrenunciáveis, não podendo o seu exercício sofrer limitação voluntária.
8Art. 421. A liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da função social do contrato
9Op. Cit. p. 219.
101o Para alienar, hipotecar, transigir, ou praticar outros quaisquer atos que exorbitem da administração ordinária, depende a procuração de poderes especiais e expressos.
11Op. Cit. p. 296.
12Op. Cit. p. 222.
13Art. 221. O instrumento particular, feito e assinado, ou somente assinado por quem esteja na livre disposição e administração de seus bens, prova as obrigações convencionais de qualquer valor; mas os seus efeitos, bem como os da cessão, não se operam, a respeito de terceiros, antes de registrado no registro público.
14Art. 129. Estão sujeitos a registro, no Registro de Títulos e Documentos, para surtir efeitos em relação a terceiros:
9º) os instrumentos de cessão de direitos e de créditos, de sub-rogação e de dação em pagamento.
15Op. Cit. p. 223.
16Op. Cit. p. 223.
17Direito das Obrigações. Rio de Janeiro: Forense, 1977. p. 318-319
18Orlando Gomes. Obrigações. 6ª ed. Rio de Janeiro: Forense. p. 252.
19Op. Cit. p. 224
20Manual de Direito Civil. Volume único. 2ª ed. rev. atual. São Paulo: Método, 2012. p. 383.
21Art. 904. A transferência de título ao portador se faz por simples tradição.
22§ 1º A transferência das ações nominativas opera-se por termo lavrado no livro de "Transferência de Ações Nominativas", datado e assinado pelo cedente e pelo cessionário, ou seus legítimos representantes.
23Op. Cit. p. 224.
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