A desnecessidade de prova do efetivo recebimento da notificação como requisito prévio para a propositura da ação de busca e apreensão
Inserida no ordenamento jurídico e presente em grande parte das operações de mútuo bancário, a alienação fiduciária é direito real de garantia sobre coisa alheia que se opera pela transferência da propriedade resolúvel ao credor, facilitando a recuperação do crédito na inadimplência através da retomada do bem. Assim, durante o período de normalidade contratual o devedor torna-se mero possuidor direto do bem, adquirindo a propriedade plena com o pagamento da dívida.
Ressalvados os casos de alienação fiduciária de bens imóveis, cujo tratamento dado pelo legislador foi o de possibilitar ao credor o completo protagonismo na retomada da garantia de forma extrajudicial[1], a retomada dos bens móveis se dá hoje pela via judicial.
Não se olvida da existência de projeto de lei em trâmite que objetiva dar semelhante tratamento aos credores titulares de alienação fiduciária de bens móveis[2], àquele já dado aos detentores de garantia fiduciária de bem imóvel, contudo, segue-se a tramitação na respectiva casa legislativa.
Apesar de inafastável o comando jurisdicional, a medida judicial em testilha se dá através de rito especial, com estreita cognição. O art. 3º do Decreto Lei 911 de 1º de outubro de 1969, assegura que, uma vez comprovada a mora, conceder-se-á a busca e apreensão do bem alienado fiduciariamente de forma liminar.
A mora no caso, decorre do simples vencimento do prazo para pagamento, devendo-se, por outro lado, haver prévia notificação do devedor “por carta registrada com aviso de recebimento, não se exigindo que a assinatura constante do referido aviso seja a do próprio destinatário”, nos termos do §2º, do art. 2º do Decreto Lei 911.
Sob esta ótica, o ajuizamento da ação e busca e apreensão demanda a conjugação da tríade: alienação fiduciária em garantia, mora e notificação do devedor, com destaque para este último, do qual o Colendo STJ editou a súmula 72[3] tornando-o ato imprescindível.
É justamente nesse tema que se insere a controvérsia acerca do efetivo recebimento da notificação.
Anteriormente à Lei 13.043/2014, o art. 2º, §2 º do Decreto Lei 911 elencava que a notificação deveria ser feita por Cartório de Registro de Títulos ou Protesto, a critério do credor. Visando desburocratizar, a novel legislação permitiu a utilização da carta com aviso de recebimento na notificação prévia do devedor.
Muito embora o mesmo comando assegure que é dispensável a assinatura do próprio destinatário na notificação, existem outras hipóteses não abarcadas no artigo em voga, se considerarmos que as correspondências também podem ser devolvidas sem cumprimento. É dizer, o que aplicar quando a notificação não é assinada pelo devedor, tampouco por terceiro apto a recepcioná-la?
Neste passo, e até se aproveitando da fé-pública dos cartórios é que muitos credores retroagiram às regras antigas, notificando via cartório de títulos ou protesto, onde admite-se, inclusive, a intimação por edital.
Nestas circunstâncias, sem sombra de dúvida, têm-se reconhecido a validade da notificação de forma a viabilizar o manejo da ação de busca e apreensão, ainda que a notificação por correio não tenha alcançado o seu desiderato e que o meio utilizado para ultima-la seja diferente daquele a que faz menção a mais recente redação do art. 2º, §2º do Decreto Lei 911.
Em contrapartida, numa interpretação mais ampla, o Colendo Superior Tribunal de Justiça, por ocasião do julgamento do REsp 1.828.778/RS, de relatoria da Min. Nancy Andrigui, delineou o entendimento de que a tentativa de entrega da notificação pelo credor no endereço declinado no contrato é suficiente para atendimento do quanto disposto no art. 2º, §2º do Decreto Lei 911. Ou seja, estar-se-ia diante de uma hipótese em que o credor apenas se desincumbiria de provar que procedeu com a notificação no endereço cadastral, como instrumento de acesso a via da busca e apreensão.
As razões estão particularmente alicerçadas no fato de que nos contratos de alienação fiduciária a mora é ex re, e independe de outras atribuições. Ademais, não poderia o credor ser penalizado pela troca de endereço do devedor, sem prévia comunicação, à menoscabo dos princípios da boa-fé e probidade, como citado no precedente mencionado anteriormente.
Nessa linha de ideias, denota-se que algumas Cortes Estaduais já vêm replicando este entendimento. Nesse sentido:
“AÇÃO DE BUSCA E APREENSÃO – ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA – INDEFERIMENTO DA INICIAL – COMPROVAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO EM MORA – SENTENÇA ANULADA A constituição em mora foi comprovada de forma satisfatória com o envio de carta ao endereço cadastral. Ademais, a mora é ex re, de modo que sua constituição decorre do próprio vencimento da obrigação, tornando prescindível até mesmo o recebimento da notificação pelo devedor (cf. REsp n. 1.828.778/RS, Min. Rel. Nancy Andrighi, 3ª T., DJu 29.8.2019), entendimento que se coaduna com o art. 2º, § 2º do DL n. 911/69. Sentença anulada. Prosseguimento da ação. RECURSO PROVIDO para anular a r. Sentença”. (TJSP; Apelação Cível 1004701-80.2019.8.26.0176; Relator (a): Maria Lúcia Pizzotti; Órgão Julgador: 30ª Câmara de Direito Privado; Foro de Embu das Artes - 2ª Vara Judicial; Data do Julgamento: 25/11/2016; Data de Registro: 03/04/2020)
“BUSCA E APREENSÃO EM ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA. CONSTITUIÇÃO DO DEVEDOR EM MORA. DECRETO LEI Nº 911/69. NOTIFICAÇÃO AO DEVEDOR NO ENDEREÇO DO CONTRATO. VALIDADE. EMENDA À INICIAL. DESNECESSÁRIA. PRESSUPOSTOS DE DESENVOLVIMENTO VÁLIDO E REGULAR DO PROCESSO PRESENTES. SENTENÇA CASSADA. 1. Segundo o artigo 2º, § 2º, do Decreto-Lei nº 911/1969, com a redação conferida pela Lei nº 13.043/2014, a mora pode ser comprovada por meio de carta registrada, com aviso de recebimento, vez que afastou a obrigatoriedade da notificação ser registrada e expedida por intermédio de Cartório de Títulos e Documentos. 2. A notificação enviada ao endereço informado no contrato, ainda que o aviso de recebimento não tenha sido recebido, mostra-se suficiente para a comprovação da mora na ação de busca e apreensão, segundo precedentes da 3ª Turma do STJ (REsp 1828778/RS). 3. Presentes os pressupostos necessários ao desenvolvimento válido e regular do processo, deve a petição inicial ser recebida para se prosseguir a ação. 4.Recurso provido”. (Acórdão 1235538, 07054933920198070014, Relator: JOSAPHA FRANCISCO DOS SANTOS, 5ª Turma Cível, data de julgamento: 4/3/2020, publicado no DJE: 17/3/2020)
Feito esse cotejo, conclui-se que a posição externada pela Terceira Turma do Colendo Superior Tribunal de Justiça melhor traduz o objetivo do §2º, art. 2º do Decreto Lei 911, mormente se considerarmos que a primeira parte do referido regramento é claro ao afirmar que “a mora decorre do simples vencimento”. A medida extirpa, ainda, qualquer intenção do devedor de agir contra a celeridade da medida, comportando-se de forma despropositada com a clara intenção de prejudicar a ultimação da notificação.
* Jorge Souza | Sócio Fundador no SLS Advogados
[1] Lei 9.514/97 [2] Projeto de Lei no Senado n. 478, de 2017. Ementa: Dispõe sobre o procedimento facultativo do credor fiduciário para a cobrança extrajudicial de dívidas previstas em contratos com cláusula de alienação fiduciária de bem móvel, por meio do uso do instituto da busca e apreensão extrajudicial de bens móveis. [3] A comprovação da mora é imprescindível à busca e apreensão do bem alienado fiduciariamente. Importante. O credor pode demonstrar a mora do devedor por meio de carta registrada com aviso de recebimento
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